Em defesa das que sentem demais: a política do excesso nas mulheres emocionadas
Quem sente demais não é o problema. É o sintoma do que o mundo não consegue mais fingir que não sente.
Vivemos em uma época em que os afetos são regulados por uma estética da contenção. Não se pode sentir muito, nem demonstrar demais. O corpo deve ser eficiente, a linguagem precisa ser calculada, o sofrimento precisa ser breve — ou ser transformado em conteúdo motivacional. O elogio social recai sobre quem sabe se controlar, quem responde com racionalidade, quem performa equilíbrio.
É nesse contexto que certas mulheres se erguem como ruído incômodo no sistema: são as chamadas “emocionadas”, as que sentem demais, as que choram em público, que se empolgam no primeiro encontro, que falam alto quando algo dói. São as que se dizem “dramáticas”, “histericamente lúcidas”, “excessivas e, por isso mesmo, vivas”. E que, longe de pedir desculpas por isso, reivindicam o afeto como linguagem legítima de resistência.
Não estamos falando aqui de descontrole, mas de insubmissão emocional. De mulheres que recusam o imperativo da neutralidade afetiva, o ideal da mulher “resolvida”, “madura”, “emocionalmente inteligente” — quando essa inteligência significa, no fundo, reter o que deveria ser expresso.
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I. A clínica do afeto como excesso: a histeria revisitada
Freud nos ensinou que a histeria não é ausência de racionalidade, mas produção simbólica em excesso. A mulher histérica é aquela cujo corpo fala o que não pôde ser dito. Ela dramatiza, teatraliza, encena. Mas, ao fazer isso, revela o que está estruturado como repressão no laço social: o não-dito das famílias, o não-enfrentado nas relações, o insuportável das convenções.
A histeria, nesse sentido, não é patologia — é performance de uma verdade insuportável. E é por isso que as mulheres que “sentem demais” ainda incomodam tanto. Porque elas exibem o que todos tentam esconder. Porque o excesso emocional desorganiza a gramática da civilidade. Porque não há algoritmo para o choro no meio de uma reunião.
E ainda hoje, como há um século, esse excesso é patologizado. O nome mudou: hoje se diz que são “carentes”, “intensas”, “codependentes”, “difíceis”. Mas a lógica é a mesma: reduzir o afeto a sintoma individual, para não ter que lidar com ele como sintoma social.
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II. O elogio da contenção: a nova moral neoliberal do afeto
No regime neoliberal, o corpo ideal é produtivo. O sujeito ideal é autônomo. E o sofrimento deve ser, no máximo, um combustível de superação. Não há lugar para as lágrimas que não servem para nada, para o desejo que não pode ser monetizado, para a fala que não chega a nenhuma conclusão.
Nesse cenário, o excesso afetivo feminino é visto como disfuncional. Como se as mulheres que choram demais, que se envolvem rápido, que se decepcionam profundamente, estivessem “falhando na gestão emocional”. Como se sentir profundamente fosse um déficit de performance.
Mas o que essas mulheres apontam, muitas vezes sem saber, é o seguinte: talvez seja o mundo que está emocionalmente mal resolvido. E que ser saudável, hoje, exige alguma dose de desobediência afetiva.
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III. Sentir como gesto político
Reivindicar o direito de ser “emocionada” é, portanto, um ato político. Porque desafia a lógica de que o valor de uma mulher está na sua capacidade de suportar calada. Porque recusa o lugar da passividade emocional como virtude. Porque reintroduz o afeto na esfera pública — mesmo que ele venha desorganizado, imprevisível, indomado.
Essa mulher que sente demais é, no fundo, uma analista indesejada do mundo. Ela mostra que o amor não é controlável, que a dor não segue cronograma, que a vulnerabilidade não é defeito. E, ao fazer isso, devolve ao afeto sua potência original: a de perturbar o conforto da lógica.
Como diria Lacan, não se trata de buscar sentido no sintoma, mas de suportar o que o sintoma revela. E o afeto, quando vem em excesso, revela algo que foi forçado a se calar.
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IV. A crítica da inteligência emocional como novo dispositivo de silenciamento
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