Chega uma hora em que o sujeito para de correr. Não por derrota, mas por lucidez. Já não deseja ser reconhecido, compreendido, salvo, escolhido. Não porque perdeu a capacidade de desejar — mas porque descobriu que certos desejos eram, na verdade, defesas. Defesas sofisticadas, legítimas, estruturantes, mas que já não sustentam o que ele se tornou. E então surge um estado estranho, quase escandaloso para o olhar contemporâneo: não querer nada. Nem vingança, nem resposta, nem catarse. Apenas silêncio, chão, presença. Uma espécie de desejo depurado — desejo que já não precisa de objeto.
Vivemos sob a tirania da motivação. Tudo precisa ter propósito, meta, sentido. Até o descanso virou estratégia de performance. A renúncia, nesse contexto, é vista como fraqueza. Mas há renúncias que não são recuo, são afirmação: não preciso mais disso para existir. O sujeito que alcança esse ponto — seja após um luto, uma demissão, uma ruptura — não está desorientado. Está sóbrio. O que caiu não foi o desejo, mas a fantasia de completude que o sustentava.
Nietzsche chamava isso de Amor fati — amar o próprio destino, mesmo sem finalidade. Não é resignação. É aceitação ativa. A capacidade de dizer sim ao que é, sem exigir que faça sentido, sem pedir que retorne, sem buscar redenção. E isso é radical. Porque desmonta a gramática do desejo como falta a ser preenchida. O desejo, aqui, não é busca. É gesto. Não é fome. É presença.
Na clínica, isso aparece como uma pausa. O paciente que para de fazer planos, que não quer saber o que “vai ser de si”, que recusa a lógica da reparação. À primeira vista, parece depressão. Mas muitas vezes é só silêncio simbólico. Um período em que o sujeito começa, enfim, a habitar sua própria ausência — não como perda, mas como condição. Como quem diz: não sei mais quem sou, mas pela primeira vez não estou tentando resolver isso.
E o mundo, claro, reage com violência. A ausência de demanda é vista como falência. Esperam que o sujeito retome logo o jogo: encontre uma nova paixão, monte um novo projeto, faça um novo curso. O não-desejo incomoda porque revela o desespero dos que ainda estão correndo atrás de algo. O que não quer nada confronta o que precisa de tudo. E por isso é tão difícil sustentar esse lugar sem culpa. Mas é nele que mora a chance de escutar um outro tipo de voz — a que não grita, a que não quer, a que apenas é.
Essa fase é solitária. Não há medalhas, nem feedback, nem platéia. É o avesso da performance. Mas também é o útero de algo que talvez, mais tarde, possa nascer. Porque só quem renuncia a tudo pode desejar de novo — sem confundir desejo com urgência, paixão com carência, projeto com fuga.
Como sustentar o estado de não querer como forma legítima de travessia:
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