O amor como pacto de silêncio: o que não se diz nos relacionamentos
Talvez amar seja também isso: sustentar, com dignidade, aquilo que não se pode dizer. Mas saber escutar o silêncio do outro — e o próprio — é o que separa o pacto simbólico da cumplicidade alienante.
Nos relacionamentos amorosos, diz-se muito. Há promessas, declarações, planos, narrativas, brigas. Mas há também, e talvez sobretudo, o que não se diz — aquilo que é silenciado, recalcado, evitado, suspenso no ar como um afeto sem nome. A convivência íntima, ao contrário do que supõe o ideal de transparência emocional, não é feita apenas de comunicação, mas de pactos tácitos de silêncio que sustentam o vínculo tanto quanto o comprometem.
No amor, calar é, frequentemente, condição de continuidade. Silencia-se o que poderia ferir, o que não cabe no contrato afetivo, o que ameaça desorganizar o equilíbrio precário que sustenta a convivência. E assim, o silêncio se torna um modo de amar, um gesto que protege o outro da nossa verdade — e a nós mesmos do real da relação.
É preciso começar com Freud, que nos ensina, em A Interpretação dos Sonhos (1900), que o discurso consciente é apenas a ponta de um iceberg. O inconsciente fala o tempo todo, mesmo quando não queremos ouvir. No amor, o inconsciente também fala — pelos lapsos, pelos gestos, pelas ausências, pelos silêncios. E esses silêncios, ao contrário da ideia de que seriam “vazios”, são cheios de sentido. Cheios de defesas, de sintomas, de pactos de não agressão.
O silêncio amoroso não é apenas ausência de fala: é, muitas vezes, uma estrutura de exclusão simbólica. Um acordo implícito que define o que pode e o que não pode ser dito na relação. Lacan diria que toda relação está atravessada por um discurso do Outro, e que há coisas que não se dizem porque são indecíveis dentro da lógica simbólica que o casal construiu. Não se fala do desejo por outros, do ressentimento acumulado, da solidão a dois, da ambivalência entre amor e tédio, da falta de desejo. Não se fala não porque não se sabe — mas porque se sabe demais.
Silenciar, nesse contexto, é proteger a ficção. Roland Barthes, em Fragmentos de um Discurso Amoroso, nos mostra que o amor é feito de signos, de representações que sustentam uma imagem: de nós mesmos, do outro, da relação. Há verdades que não cabem nessa moldura. Dizer tudo seria destruir a estética do encontro, desorganizar o texto que escrevemos a quatro mãos. Assim, o amor exige, paradoxalmente, mentiras sinceras: pactos de silêncio onde o que não se diz é tão importante quanto o que se afirma.
Mas por que esse silêncio é necessário? Porque a linguagem é, ao mesmo tempo, mediação e ameaça. Dizer é se arriscar. É sair do imaginário do casal — aquele onde tudo se encaixa — e entrar no simbólico — onde a falta se revela. É Winnicott quem nos ajuda a pensar a importância do “espaço potencial”, aquele em que é possível brincar, experimentar, errar sem o terror da aniquilação. O silêncio, às vezes, protege esse espaço. Mas, em excesso, o sufoca.
A questão não é, portanto, romper todos os silêncios. Isso seria cair no imperativo da comunicação total, típico da contemporaneidade, em que tudo deve ser dito, verbalizado, traduzido — sob pena de parecer evasivo, tóxico ou emocionalmente indisponível. A positividade comunicacional, como nos alerta Byung-Chul Han, se transforma em nova forma de vigilância afetiva. Mas nem tudo é dizível. E nem tudo o que é dizível precisa ser dito. O problema é quando o silêncio deixa de ser espaço de cuidado e se torna território de clausura.
Nos casais em crise, o silêncio muda de tonalidade. Ele deixa de ser resguardo e vira sintoma. Não se fala mais do que se sente, mas também não se sente mais o que não se fala. O silêncio vira gelo, indiferença, abismo. Como nos mostra a clínica, muitos relacionamentos longos sobrevivem não pelo que têm de vital, mas pelo que evitam: o confronto, a ruptura, a mudança. E aqui o pacto de silêncio se revela como contrato de estagnação, em que ambos sabem que há algo errado, mas decidiram — inconscientemente — não tocar no assunto.
Esse silêncio a dois é profundamente político. Silvia Bleichmar, em seus estudos sobre subjetividade e laços sociais, aponta que o amor é sempre um processo de negociação simbólica, onde se jogam desejos, medos, territórios e fantasmas. O que não se diz é aquilo que comprometeria a hegemonia simbólica da relação. O que não se diz denuncia quem tem mais medo, quem ama mais, quem deseja menos, quem está pronto para ir embora.
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