Toda relação é uma disputa pelo direito de nomear. O olhar do outro não apenas reconhece, mas molda, exige, captura. Ser visto pode ser libertador, mas também pode ser uma condenação simbólica. Quando o afeto vira leitura permanente, o sujeito deixa de existir para si e passa a atuar um papel no teatro de expectativas alheias. Há quem deseje o vínculo, mas sonhe secretamente em sumir. Não por medo de amar, mas por cansaço de ser decifrado. Desaparecer torna-se, então, uma tentativa radical de sobrevivência psíquica. Uma recusa a ser traduzido enquanto ainda se está em rascunho.
1. O excesso de reconhecimento como forma de aniquilação
O amor é vendido como antídoto contra a solidão. Raramente se diz que, no excesso, ele sufoca. A intimidade extrema pode se tornar vigilância. Não o controle grosseiro, mas o zelo simbólico que exige transparência emocional em tempo real. Winnicott falava do gesto espontâneo como marca do verdadeiro self. O problema é que, sob o olhar constante, esse gesto se retrai como um bicho encurralado.
A exposição contínua, seja nas redes sociais, nos casais ou nos vínculos terapêuticos mal conduzidos, transforma o outro em plateia. E o eu, em produto de consumo afetivo. O sujeito não deseja mais ser compreendido. Deseja escapar. Não é fuga, é respiração.
2. A erotização do desaparecimento
Sumir pode ser um ato erótico. Não responder. Não justificar. Não atualizar status. Há, nesse gesto, uma potência indomável. Camus escreveu que o que dá sentido à vida é mais forte do que a morte. Mas há momentos em que desaparecer é a única forma de sentido ainda disponível. Fugir, aqui, não é covardia. É revolta. É preservação do que ainda pulsa sob a casca das identificações.
A cultura da vulnerabilidade, ao exigir exposição contínua, cria outra forma de opressão. O sujeito se vê forçado a performar a própria dor, a fazer da fragilidade uma estética. Há algo de pornográfico na compulsão pelo autoesclarecimento. E há uma ética na recusa.
3. A amizade como cárcere disfarçado de abrigo
Algumas relações só sobrevivem enquanto houver ferida. Quando o sujeito se reorganiza, o vínculo se desorganiza. Há laços que se sustentam sobre o entulho da dor compartilhada. Romper com esse teatro exige uma violência simbólica. Crescer é, muitas vezes, abandonar papéis que davam sentido à encenação. Ser feliz pode soar como deserção.
Em clínica, é comum observar sujeitos que sabotam suas próprias conquistas para não trair o enredo de afeto que os amarra ao outro. Preferem o sofrimento contínuo ao silêncio de uma ruptura simbólica. A dor se torna passaporte de pertencimento. A melhora, um crime afetivo.
4. Olhar, nomear, matar
Foucault alertava: nomear é exercer poder. Cada rótulo é uma prisão com aparência de reconhecimento. Mesmo os elogios reduzem. Chamado de inteligente, espera-se que o sujeito seja sempre lúcido. Chamado de forte, espera-se que ele não desabe. E assim por diante, até que não haja mais ninguém ali além da máscara.
Lacan não foi mais gentil. O olhar do Outro nos constitui, mas também nos rouba. Desejamos reconhecimento, mas tememos a captura. Ser visto demais é ser cercado de expectativas. E o desejo não respira sob holofotes. O desejo é clandestino. Só vive no intervalo entre o olhar e a fuga.
5. O gozo de não responder
Negar a resposta pode ser um ato ético. Uma ruptura com a coreografia previsível do afeto. Quando tudo pede explicação, o silêncio se torna insubordinação. O sujeito recusa participar da economia simbólica que o transforma em narrativa legível.
Há um gozo específico no desaparecimento seco. Sem anúncio. Sem tragédia. Apenas a retirada tática de si do campo de batalha das interpretações. O que resta, então, é a possibilidade de renascer fora do script. Como quem recusa ser cena. Como quem prefere ser intervalo.
Como desaparecer sem sumir
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